quinta-feira, fevereiro 16, 2006

Se bem me lembro (por Zé Macário)

Se bem me lembro...plagiando Vitorino Nemésio, o tal de "Mau Tempo No Canal"; ou melhor, não plagiando porque o termo, se bem me lembro, era já corriqueiro entre as nossas gentes da Póvoa: - Se bem me lembro - dizia eu - o Ti Varanda era um dos velhinhos que povoam as brumas memoriais da minha infância. Tinha uma acentuada corcunda, andava com as mãos atadas atrás das costas, como os polícias, usava sapatos de barro em vez de tamancos, como o Ti Branquinho, tinha um andamento esquisito, saltitante, e passeava a sua vida guardando a água no rego do Lameiro, a caminho do Paúlo. Tinha uma filha Solteirona, baixa, gorducha e corada, não muito bafejada pela beleza, pelo menos com aquela beleza que no meu conceito subjectivo de criança de quatro, cinco ou seis anos, achava ficar bem assente no género feminino. Esta filha, a Rosa Varanda, era uma simpatia de pessoa e nunca passava por mim sem me fazer algumas gracinhas, e de tal forma eu gostava dela, que os adultos já me diziam com ar de gozo, que ela era a minha namorada. Pois um dia, meus amigos, inguenchei com a Rosa Varanda, e, logo depois daquela lenga-lenga, inguenchar, inguenchar para dia de Páscoa me dares o folar, e tal tal, tal tal, ela, a Rosa, deixou-se ficar com a minha reza.Como era bondosa aquela Rosa! Passei semanas e semanas - que me pareceram anos - a esconder-me entre os carvalhos, os pinheiros, as paredes para a surpreender com a minha reza, tendo porém sido muitas vezes surpreendido com a sua, porque também ela se disfarçava e escondia para me surpreender e mandar rezar. Porém ao tê-la mandado rezar aí pela Quinta Feira Santa, não mais voltei para as bandas do Paúlo até ao Sábado-Aleluia - assim chamado naqueles tempos, por ser às nove horas de sábado que os santos despiam o seu luto. Pois a Rosa Varanda ficou com a minha reza, e portanto ganhei-lhe o folar; A Rosa terá adoecido e morreu sem me pagar - possívelmente uma quarta de confeitos ou mesmo só dois confeitos para jogar ao rapa...que pena eu tive que a Rosa não me tivesse pago, e durante muito tempo esperei que ela me aparecesse - bondosa, como era seu timbre - a entregar-me, com um beijo, a prenda que me devia. Que pena eu tive que a Rosa me deixasse, quase orfão, no Paúlo ou no rego do Lameiro. Fiquei muito mais pobre e só, com a falta daquela Rosa. Percebo agora, ao relembrar tão remotas recordações, poque é que começam a deixar de me chamar Zé Macário e começam a chamar-me sexagenário.

2 comentários:

Anónimo disse...

Não sei qual foi o efeito que o teu texto porduziu nos restantes leitores, mas a mim deixou-me emocionada!
É um belo texto.

(Celeste Gonçalinho de Oliveira Duarte)

Anónimo disse...

No texto acima escrito onde se lê "porduziu" deve ler-se "produziu".

(Celeste Gonçalinho de Oliveira Duarte)

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