quarta-feira, fevereiro 22, 2006

In Memoriam Póvoa (por Zé Macário)

Sempre que uma mãe tinha necessidade, numa qualquer conversa, de fazer reconhecer e inflectir ou reflectir sobre si, o amor aos filhos, tinha esta frase lapidar: - Mãe é mãe, e tira a comida da boca para a dar ao filho! Sempre que isto era dito e, embora fosse uma frase vinda já dos seus ancestrais, não era no entanto alguma metáfora, pois tinha mesmo um sentido absolutamente real. Isto para dizer que, era prática corrente nos meus tempos de menino e moço, as mães "regurgitarem" a comida para a boca dos seus bebés. Sim. Mastigavam a comida, tiravam-na da boca e, com as pontas dos dedos, colocavam o bolo alimentar, já bem mastigado, na boca dos seus meninos. Nunca reparei que para este acto, tivessem pelo menos o cuidado de lavar as mãos, ainda que isto pudesse eventualmente ocorrer a meio de uma espalhagem de estrume para as sementeiras. Os bebés que não morriam nos primeiros anos, tornavam-se fortes e robustos e vinham a gozar mais tarde de variada ementa alimentar. Caldo de cebola ao pequeno-almoço e caldo de couves para as outras refeições, acompanhavam o homem do berço à tumba. Para as bessadas era normal cozinhar umas batatas amassadas com pão de trigo e toucinho - quase uma espécie de açorda, mal amanhada - prato com certeza muito nutritivo mas, que, eu não gostava nada, e a que costumava chamar "batatas amassadas com o cu". Outro prato muito frequente e pouco digno da minha simpatia, era batatas cozidas, com torresmos e banha derretida; sim, os torresmos, que eram quase sempre rançosos, poderiam ter bem mais de meio ano de conservação na banha. Milhos e caldo de farinha eram pratos muito usados no Inverno e constavam de uma paparoca à base de uma farinha grossa de milho, moída especialmente para a sua confecção; Eram saborosos enquanto havia carne fresca de porco, e, diria, muito repelentes depois, até pelo seu aspecto comparável ao cócó de menino. Muito usual no Inverno, era também o caldo de castanhas que, não sendo nenhum pitéu, era no entanto bastante comestível. E as falachas?! As falachas era uma espécie de bôla de farinha de castanha, cozida em forno de lenha, entre folhas de castanheiro. Igualmente repulsivos para o meu gosto, eram todos os pratos possíveis de cozinhar em misturas com leite e que, iam desde o leite com arroz até ao leite com botelha. Pratos mesmo, mesmo simpáticos para mim, eram todos os que metiam borrego, cabrito, ou mesmo os melhores enchidos caseiros que a minha memória retém. Era tão bom, por exemplo, roubar umas chouricitas para ir comer à festa dos milhos - o São Brás de Meijinhos. Muito simpáticos em termos gastronómicos eram ainda: a matação, a função, a função dos miolos e os jornes. Vocês ainda se lembram dos jornes? Também no domínio das louças se poderia escrever outro capítulo, limitando-me porém apenas a algumas vagas lembranças: -Todos os anos ao início do Inverno apareciam na Póvoa, junto à torre sineira, os paneleiros de Fasamões que aqui vinham trocar panelas e púcaros de barro preto, por alguns escudos, ou mesmo por alguns géneros. Sempre que se quebrasse alguma peça de louça, guardavam-se os estilhaços até que aparecesse o "Ginó" que um dia apareceria com toda a família, vindo das bandas da serra, para consertar todos os pratos, malgas, panelas e caçoilas - de ferro ou de barro - ou mesmo qualquer utensílio de lata. Tudo era consertável! Não havia lugar a desperdícios de qualquer natureza; um simples frasco que tivesse aparecido em casa, com qualquer droga da farmácia, poderia ser bem lavado e aproveitado para galheteiro, ou para qualquer outra função. Também os chapéus de palha rotos que, já não servissem para tapar as cabeças, serviam para substituir os vidros das janelas. Na Póvoa havia somente uma senhora - a senhora Rafaela, esposa do Ti Mochila - que por acaso até era de origem espanhola, e quanto a todas as outras habitantes, eram apenas mulheres sem direito a senhoria. Ora aquela senhora era a única que tinha duas panelas de esmalte, e que por isso, todos os anos as emprestava à minha mãe para fazer marmelada. Ainda se fazia marmelada em panelas naquele tempo!...A minha mãe tinha sempre uma panela grande especial para tingir roupa com cascas de amieiro. As frutas, principalmente maçãs, eram trazidas nos Domingos de Outono pelas gentes de Lazarim que, também junto da torre sineira comerciavam em regime de troca directa, isto é, tantas maçãs por tantas batatas. O contraste entre a gente da aldeia e a gente da cidade era abismal: - Em Lamego não se matava porco, não havia função, não havia jornes, nem pútegas, nem queijapões nem gasalhos; a Lamego não ia o "Ginó"!...Os senhores da cidade - sendo nêdeos e fidalgotes - eram Joõesinhos, Manelinhos, Zézinhos, Jaquinzinhos e até Mijinhas, vejam lá!...Os homens da aldeia eram Joões, Maneis, Zés, Jaquins e ...Mijinhas nem pensar!...Se eu fosse um Mijinha não seria possível, por exemplo, apagar tantas vezes, com uma seringadela, o lampião da Tia Arminda, quando esta ia à noite à loja ver as ovelhas. Os meninos da cidade usavam só meias calças e de um único pano, enquanto os rapazes da aldeia usavam calças inteiras e de muitos, muitos bocados de pano. Os homens da aldeia falavam sempre com os nêdeos e fidalgotes senhores da cidade, de forma extremamente reverencial. Enfim, como tudo era diferente naquele tempo!...

1 comentário:

Anónimo disse...

Para os mais novos, todos estes textos, que nos falam dos usos, e agora este um pouco da gastronomia, poderão parecer um absurdo, mas não o foram. Isto foi a realidade, ainda não há muitos anos.
Parabéns Zé.
Jorge

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