terça-feira, fevereiro 21, 2006

Recordar é Viver

Em meados do séc. XX fazia-se na nossa freguesia, um cortejo onde a mocidade da Póvoa de Lamego tomava parte, era organizado com sabedoria e arte.

Fez-se vários anos
nem sempre no mesmo dia,
vou resumir como e porque se fazia.

Para organizar o cortejo
havia muito trabalho
e muitas ocupações,
desde as ofertas às roupas
das danças às canções.

Na frente, iam as burras
carregadas sem compaixão
levando em suas cargas,
batatas, cebolas e feijão.

A burra da frente, a carriça,
ia toda enfeitada
de laços e fitas de papel
lá ia que nem cabia na pele.

A burra chamada joaninha;
levava uma faixa laranja
e na cabeça,
um belo lencinho de franja.

A preta; uma burra
velha e matreira,
levava óculos de sol
como se sofresse de cegueira.
Na cabeça um chapéu,
enfeitado de notas correctas
era a maneira das pessoas
ostentarem as ofertas.

Ia também uma pequena burrita,
robusta e caprichosa,
por ser tão bonita,
era chamada de rosa.
Tinha na testa uma estrela branca,
por ser pequena,
ainda não usava retranca.
Esta ia apenas,
para enfeitar e a atenção chamar.

Quando a russa e a ligeira
não queriam caminhar,
desatavam aos coices
e começavam e roncar,
Toda a gente parava,
para o espectáculo admirar.

E lá ia um par de foguetes
que só elas sabiam deitar,
juntamente, um aroma
que não agradava nada cheirar.

A burra Joana era branca,
tinha na testa uma malha,
levava uma albarda tão velha,
que a parceira com a dentuça
lhe ia comendo a palha..

Já comentavam lá para a Sé,
elas vêm todas invejosas e diziam,
se a inveja fosse tinha,
bem ficavam todas tinhosas.

Lá ia o rancho
de raparigas e rapazes
com seus trajes e enfeites
todos eram audazes.

As raparigas de blusa,
enfeitadas com lacínhos
saias pretas bem rodadas
e nos pés uns chinelinhos.

Na cabeça um lindo lenço
de cores vivas florido,
um avental pequenino
atraente e bem garrido.
Algumas saias,
eram mesmo seculares,
normalmente só usadas,
em romarias ou importantes jantares.

Os rapazes; de camisa branca
alva como a orvalhada,
de faixa vermelha à cinta
e de calça bem vincada.

Chapéu preto na cabeça,
que ficava muito bem
e a boa educação,
não faltava a ninguém.

Aparecia a tia Rosalina
junto ao poral da porta
segurando o avental
com os legumes da horta.
E dizia: será que isto vai dar
para a residência do Sr. Padre reparar...
E continuava,
a burra do meu compadre
não tem cabeçada,
pois ele passa a vida nos copos,
e não tem dinheiro para nada.

Por incrível que pareça
e sem nenhum embaraço
mesmo de açafate na cabeça
não erravam nem um passo.

Iam três ranchos,
todos no mesmo dia,
porque são três povoações
que formam a freguesia.

A cantar e a dançar,
faziam 5 km a pé
e na frente emproado como um pavão,
lá ia o maestro Zé.

Quando chegavam à cidade
toda a gente aplaudia com fervor,
e pediam:
repitam, repitam lá por favor!

Eram palmas e mais palmas
e parabéns calorosos,
a festa era de todos,
desde as crianças aos idosos.

Tinham bonitas canções
dava gosto ouvir,
vejam lá se conhecem
algumas que vou referir.

Póvoa minha terra querida,
foste o meu berço Natal,
és um canteiro florido,
nos jardins de Portugal...

Não me chames farrapeira,
eu nunca vendi farrapos,
tenho uma saia nova,
toda cheia de buracos...

Margarida, Margarida,
quando o sol vem a nascer,
deixa-te estar escondida,
Margarida, Margarida,
nessa paz do teu viver...

Quem fazia os ensaios
era o Sr. José de Oliveira
homem muito culto,
que a música amou a vida inteira.

As burras eram carregadas
e enfeitadas a rigor
as ofertas,
eram levadas para a casa do Sr. Prior.

Não era para ele comer,
iam depois a leilão,
em dia marcado e hora,
para arranjar dinheiro
para começar a obra.

O padre tinha razão,
é que a casa onde vivia era tão velha,
que nem sequer tinha portão.
E assim ficava contente,
o nosso Sr. Padre João.

Vivia bastante pobre,
mas tinha uma alma
generosa e nobre,
usava batina preta já sem botões no peito,
mas com o seu colarinho branco,
dava-lhe um ar de respeito.

Em dias de catequese
era sempre dos primeiros,
muito amigo das crianças
e chefe dos escuteiros.

Toda a gente colaborava;
rico e pobre
pois era por uma causa justa e nobre.

Lucilia Alves

2 comentários:

Anónimo disse...

Olá Lucilia!
Gostamos muito, não só da construção poética do texto, mas principalmente do retrato dos costumes nele contido.
Beijos Teresa e Zé Macário

Anónimo disse...

Mal me lembro,desses cortejos, mas mesmo assim, lembro-me vagamente (talvez fosse a primeira vez) de ter visto realmente as burras e as vacas todas engalanadas, e com as campaínhas ao pescoço, e a alegria que foi.
Parabens por este texto Lucilia.
Jorge

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