CARTAS NOTADAS
Há uns bons anos atrás esta aldeia padecia do mesmo mal que a maioria da sociedade portuguesa, a iliteracia. Desta forma, quando os mais velhos pretendiam escrever a alguém, recorriam à vizinha ou à amiga. Era um processo complexo que implicava um acentuado grau de confiança na pessoa que escrevia e esta, por sua vez, tinha o rigoroso dever de sigilo. Então, era frequente ouvir-se dizer: “Vou notar uma carta para o meu Júlio”; “Preciso de notar uma carta para a minha Ana, mas nem sei com quem vá ter. A Amélia é uma língua de trapo e a Graça nem tempo tem para catar os piolhos”.
De uma forma ou de outra, lá iam suprindo os seus deficits literários e enviando as suas mensagens. Estas, de um modo geral, baseavam-se nas vivências do quotidiano, acrescidas de uma ou outra questão social e, de quando em vez, uma ou outra fofoquice, não fugindo muito ao modelo que se segue:
“ Meu querido filho:
Espero que esta carta te vá encontrar de perfeita e feliz saúde. Nós por cá todos bem. Soube que tens tido muito trabalho e que te encontras um pouco adoentado. Olha, por aqui, as coisas também não vão muito bem: o frio é muito, as couves queimaram-se todas e há falta de pasto para o gado.
Não vês que a malvada da coelha pariu sete coelhinhos e matou-os a todos! O porco está a ficar bem cevado e, lá para o Natal, vai à faca!
O Manel da Zeza fala com a Teresa da Micas e parece que vamos ter casório! Já os viram a beijar-se em público! É uma pouca vergonha! Mal empregado rapaz para aquela sirigaita!
Ouvi dizer que o Carlitos da Mariquinhas vai para o seminário. Aquilo é que vai ser um tal padre!
Muito mais tinha para te contar, mas como o tempo escasseia…
Quando é que vens cá? Não estejas preocupado connosco! Não nos falta nada! Graças a Deus temos muitas batatinhas, muita hortaliça e ainda um naco de pá para comerdes quando vierdes. Faz hoje quinze dias que cozi o pão e ainda está fresquinho. Se calhar, vou ter que o cozer outra vez. Isto, se o moleiro não se esquecer de vir. Os salpicões do ano passado vendemo-los a dez notas o quilo e os presuntos a dois contos. Vê lá se não é um bom dinheirinho!? Olha, aqueles dois frangotes que cá viste são para dar ao médico, se ele der a baixa ao teu pai. Se não lixa-se e levo-os à feira que sempre renderão cinco notas.
Meu querido filho, despeço-me de ti com muitas saudades. Um abraço para ti e outro para a tua Maria. Diz-lhe que mandei um abraço para ela. Beijinhos para a Rita, para o Nuno e para o João. Diz também à tua vizinha que eu perguntei por ela. Não te esqueças! Que Deus vos abençoe a todos.
Até à volta do correio”
Pois, era assim mesmo. Vastas vezes, tive a honrosa missão de satisfazer o apelo de alguns desses notantes. Custava-me um pouco, devo confessá-lo, mas não podia nem devia deixar de o fazer. Tais missivas retratavam fielmente a vida de um povo: na sua forma de ser e de estar, nas suas condições de vida e limitações, nos seus projectos e ambições, enfim, em pequenos nadas que davam razão de ser à sua existência.
Anónimo
Há uns bons anos atrás esta aldeia padecia do mesmo mal que a maioria da sociedade portuguesa, a iliteracia. Desta forma, quando os mais velhos pretendiam escrever a alguém, recorriam à vizinha ou à amiga. Era um processo complexo que implicava um acentuado grau de confiança na pessoa que escrevia e esta, por sua vez, tinha o rigoroso dever de sigilo. Então, era frequente ouvir-se dizer: “Vou notar uma carta para o meu Júlio”; “Preciso de notar uma carta para a minha Ana, mas nem sei com quem vá ter. A Amélia é uma língua de trapo e a Graça nem tempo tem para catar os piolhos”.
De uma forma ou de outra, lá iam suprindo os seus deficits literários e enviando as suas mensagens. Estas, de um modo geral, baseavam-se nas vivências do quotidiano, acrescidas de uma ou outra questão social e, de quando em vez, uma ou outra fofoquice, não fugindo muito ao modelo que se segue:
“ Meu querido filho:
Espero que esta carta te vá encontrar de perfeita e feliz saúde. Nós por cá todos bem. Soube que tens tido muito trabalho e que te encontras um pouco adoentado. Olha, por aqui, as coisas também não vão muito bem: o frio é muito, as couves queimaram-se todas e há falta de pasto para o gado.
Não vês que a malvada da coelha pariu sete coelhinhos e matou-os a todos! O porco está a ficar bem cevado e, lá para o Natal, vai à faca!
O Manel da Zeza fala com a Teresa da Micas e parece que vamos ter casório! Já os viram a beijar-se em público! É uma pouca vergonha! Mal empregado rapaz para aquela sirigaita!
Ouvi dizer que o Carlitos da Mariquinhas vai para o seminário. Aquilo é que vai ser um tal padre!
Muito mais tinha para te contar, mas como o tempo escasseia…
Quando é que vens cá? Não estejas preocupado connosco! Não nos falta nada! Graças a Deus temos muitas batatinhas, muita hortaliça e ainda um naco de pá para comerdes quando vierdes. Faz hoje quinze dias que cozi o pão e ainda está fresquinho. Se calhar, vou ter que o cozer outra vez. Isto, se o moleiro não se esquecer de vir. Os salpicões do ano passado vendemo-los a dez notas o quilo e os presuntos a dois contos. Vê lá se não é um bom dinheirinho!? Olha, aqueles dois frangotes que cá viste são para dar ao médico, se ele der a baixa ao teu pai. Se não lixa-se e levo-os à feira que sempre renderão cinco notas.
Meu querido filho, despeço-me de ti com muitas saudades. Um abraço para ti e outro para a tua Maria. Diz-lhe que mandei um abraço para ela. Beijinhos para a Rita, para o Nuno e para o João. Diz também à tua vizinha que eu perguntei por ela. Não te esqueças! Que Deus vos abençoe a todos.
Até à volta do correio”
Pois, era assim mesmo. Vastas vezes, tive a honrosa missão de satisfazer o apelo de alguns desses notantes. Custava-me um pouco, devo confessá-lo, mas não podia nem devia deixar de o fazer. Tais missivas retratavam fielmente a vida de um povo: na sua forma de ser e de estar, nas suas condições de vida e limitações, nos seus projectos e ambições, enfim, em pequenos nadas que davam razão de ser à sua existência.
Anónimo
3 comentários:
Esta página passou a ser aberta com um tema do saudoso "Zeca Afonso", que pretendo dedicar a todos os contribuintes deste blog, assim como a todos os visitantes.
Para ti amigo, "tráz outro amigo também"
Gostei muito deste texto,tanto pelo seu interesse histórico/cultural como pelo sentimento que transmite.
Acho que o senhor(a) "anónimo" deve continuar a escreve!!
Ass. T
Extremamente agradável o teu tipo de escrita e como é bom relembrar com a nitidez com que retratas as vivências passadas.
Só podia ser de ti. Parabéns !!
Ass. José Costa
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