quinta-feira, janeiro 18, 2007

Recordações




Teria menos de cinco anos quando o meu pai me levou pela primeira vez às pútegas. Teria a mesma idade quando me ensinaram a conhecer e descobrir sanchas e gasalhos. Teria um pouco mais de idade quando comecei a prestar atenção à idade do gado através de um exame aos dentes; ver se um animal ainda era novo e se estava ao primeiro, ou se já mais velho e estava a cerrar. Por esta altura aprendi a ver se uma vaca tinha formigueiro nos cornos ou se teria mosqueiro na pele.
Apreciava como a minha mãe lavava minuciosamente a loiça com carqueijas.
Por estas idades já me ia embalar no berço da moira, ou ainda, inspeccionar a pedra da galha para tentar descobrir vestígios do pote de ouro deixado pelos moiros quando da sua fuga, mas sempre com muito medo de ser surpreendido pelo pote de veneno que se supunha estar dentro, para confundir. Foi ainda por esta idade que conheci e comi os queijapões.
Porém a minha nostalgia revela-se mais na idade escolar em que ajudamos a construir uma bicicleta de madeira para o Fausto, ou comíamos os ovos cozidos do Manel d`Amblina, depois de lhe termos provocado o enjoo com o pretexto de a mãe dele os ter cozido na labaige dos porcos.
Foi na minha terceira classe com a Dona Natividade, que eu vi pela primeira vez uma esferográfica ( bic cristal) que a mãe do Fausto lhe mandou de Lisboa, e que escrevia a tinta, sem borrar o papel – parecia inacreditável, até para a professora!

Zé Macário


Os homens estão loucos

Na Póvoa, lembro-me bem de que enquanto garoto, quando
alguém partia para longe, como por exemplo para o Porto ou Lisboa, ia de casa em casa despedir-se de toda a aldeia, receber algumas recomendações dos seus conterrâneos e eventualmente algumas moedas para a viagem, ou para a sobrevivência dos primeiros dias.
Também quando havia a percepção de que qualquer pessoa iria partir para o além (morrer), alguém ia para junto do leito desse vizinho fazer-lhe as últimas recomendações e ler-lhe o livro da agonia. Havia alturas em que o agonizante já não ouviria nada nem ninguém, porém na dúvida, as recomendações continuavam e a leitura também.
Quer isto dizer que, acreditando-se numa continuação da vida do outro lado, preparavam-se as pessoas para a dignidade da chegada.
Vem-me isto à ideia a propósito da “dignidade” que hoje uma certa propaganda faz da eutanásia, isto é, ao matar as pessoas dizem ajudá-las a morrer com dignidade. Que estranha dignidade esta!
Vem-me ainda isto à ideia a propósito do referendo à liberalização do aborto em nome dos liberais, ou talvez dos libertários direitos da mulher.
Desde há muito tempo a esta parte, partidos políticos e outras associações, normalmente os maiores paladinos dos “direitos humanos” têm coisificado e objectificado a pessoa, retirando-lhe toda a dignidade em nome da dignidade que dizem conferir-lhe, ou que falaciosamente lhe atribuem.
Desde a banalidade das execuções de condenados, para satisfazer os mais primários instintos de vingança em alguns países, até à liberalização do aborto em outros, ou ainda à discussão sobre a eutanásia em que recorrentemente querem envolver-nos, tudo isto não passa de um regresso à mais remota barbárie.
Se nos chocava o relato da matança dos inocentes perpetrada por Heródes, Como poderá deixar de nos chocar o referendar do direito à liquidação da vida nos tempos que correm?
Que saudades eu tenho da forma vibrante como a minha professora primária nos transmitia carregada de orgulho, que os Portugueses tinham dado grandes lições de civilização ao mundo, ao ser os primeiros a abolir a pena de morte!
Tanto quanto julgo saber, na natureza, a matança entre indivíduos da mesma espécie, só acontece por motivos de sobrevivência da própria espécie.
Não consigo perceber como seremos capazes de estratificar em socalcos, por idades ou por outra razão qualquer, o valor da vida da pessoa, sabendo-se até, quanto o facto da existência de uma só pessoa pode mudar o curso de toda a humanidade. Porque o homem tem em si mesmo esta dualidade, de ser dotado da mais ínfima pequenez e da maior das magnitudes.
No entanto, segundo um princípio de corresponsabilidade universal, nada daquilo pode acontecer perante o meu silêncio, ou então tenho de me questionar pela conivência com esta barbárie.


Zé Macário

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