sexta-feira, outubro 20, 2006

Preito a Zé Gonçalinho

A Póvoa, como tantas aldeias e cidades deste nosso Portugal, assistiu, talvez ainda antes dos anos 50, à fuga dos seus filhos, para outras paragens, onde a sorte lhes sorrisse.
Não sei muito bem como foram os anos anteriores a 60, mas penso que muita gente teria partido para o Brasil, Africa, e outros, talvez se tenham ficado por Lisboa e Porto.
De entre todos aqueles que partiram, há sempre estórias de uns e de outros, que nos proporcionaram serões em família de grandes risotas e boa disposição.
São algumas dessas estórias de aventuras, que hoje aqui gostaria de retratar, mais ainda quando se trata de uma pessoa, que penso todos terem tido uma grande admiração e estima por ela.
Não posso precisar, em que ano teria saído da nossa aldeia, mas provavelmente muito novo, talvez mesmo depois de seu pai lhe ter oferecido um fato, (penso, ter sido de cotim) que ele deveria estriar no domingo de Páscoa. O facto estava prontinho a ser vestido! O domingo de Páscoa é que não havia maneira de chegar… Bom, mas lá chega finalmente o sábado de aleluia, a noite é que foi a mais longa que ele já tinha passado. Nunca mais chegava a hora de vestir o fato. Ainda o galo não tinha cantado, e já o bom do dono do fato se levantara, vestira o seu fatinho novo e aí vai ele enxada ás costas corgo abaixo, deitar a água às suas lameiras, até que o sino tocasse para a missa. Quando o sino toca aí vem ele de regresso, contente da vida assobiando, não se lembrando que a essa hora da madrugada estaria toda a gente a levantar-se.
Ora nesse tempo as casas não dispunham de WC, e como era uso as necessidades fisiológicas durante a noite eram feitas, para aquilo que hoje todos conhecemos por: “pote” e que depois eram despejados, ainda no silêncio da madrugada, pela janela fora, ou pela porta.
Foi precisamente o que aconteceu. Ainda meio adormecidas, as pessoas não perceberam que alguém vinha àquela hora da madrugada a passar, e como era normal trataram de despachar o conteúdo do pote pela cabeça abaixo do até ai radiante rapaz do fato novo. Muito triste por não poder mostrar o seu fato, lá se refugiou em casa, tentando arranjar uma desculpa para apresentar ao seu pai, uma vez que não tinha ido à missa com o seu novo fato.
Mais tarde vai para Lisboa, provavelmente levado por algum conterrâneo, e começa a trabalhar em Monsanto, naquela que hoje se pode considerar o pulmão de Lisboa. Só que o tempo foi passando, e cada vez havia menos terreno para plantar árvores, e todos os dias começava a haver despedimentos.
Mais uma vez, e como bom católico, começa a pedir a todos os Santos ajuda, para que não fosse ele um dos atingidos pela lista de dispensas. Como recompensa por este favor que os Santos lhe iam fazendo, ele prontificou-se todos os dias a subir e a descer a calçada da Ajuda sempre a rezar. Passara uma semana, e todos os dias havia despedimentos, sem que o seu nome alguma vez tivesse sido mencionado. Convencido que só tinha feito bem em pedir ajuda aos Santos, continuou cada vez a rezar mais, até que um dia, já farto de subir e descer a calçada, sempre a rezar, pensou lá para os seus botões: “ ora, ora, mas porque tenho eu de subir e descer isto tudo sempre a rezar, se eu até nem sou despedido?!, eu só não sou despedido porque sou bom trabalhador. Agora vou mas é assobiar”.
Chegado ao trabalho começa a chamada, para dispensar o pessoal….Pois é nesse dia ele também ficou muito triste, esquecera-se de rezar e foi despedido. Dizia então ele: “porra, porque diabo eu hoje não rezei mais?!...”
Sempre o conheci, como uma pessoa bem-humorada e bem disposta, não gostando que junto dele e por sua causa tristezas se avizinhassem. E a prova disso foram alguns azares que lhe foram aparecendo no caminho, mas que ele sempre contornou com grande sensatez, não contagiando com a sua dor todos os que o rodeavam. Foi o caso de num já longínquo dia 6 de Setembro, quando em Melcões, a sua camioneta resvalou e foi cair num campo. Nesse dia estava combinado ir comer com os seus familiares umas farturinhas a Lamego, pois é!... não foi o caso da camioneta ter caído que o privou de cumprir a sua parte na festa dos Remédios.
Uma outra vez, estava a preparar-se para sair, numa das suas habituais viagens de trabalho, e como era seu hábito lá foi trocar de calçado. Não reparou porem, que um dos sapatos que acabara de calçar, não era o par do outro, e só quando estava sentado à mesa para comer alguma coisa antes de sair, reparou nisso, o que lhe mereceu rápidamente mais uma das suas saidas: “- em nossa casa enquanto houver parte de cima há sempre sapatos…”
Nunca me lembro de ter visto o armazém onde guardava a mercadoria que vendia, fechado, com medo que alguém lá fosse e tirasse alguma coisa. Dizia ele então: “ fica tudo aberto, porque se as pessoas precisarem vêm cá buscar e depois logo pagam.”
Realmente assim era, ou pelo menos ele sempre acreditou que fosse.
No verão a sua casa era o ponto de encontro de novos e velhos. As noites eram passadas a jogar as cartas, que ele tanto gostava, por vezes nem se lembrava de comer para ir jogar, e aí sim… ele não gostava nada de ser interrompido no seu descanso. As pessoas que se tinham esquecido de levar o sal, ou o knorr, ou mesmo o gelado para os netos, vinham sempre em horas menos propícias, pois estava agora concentrado e como tal a um pedido de: “ -Ó Zé, quero….” Respondia ele com o seu bom humor: -Ó tia Maria tire ai e paga amanhã. – Não, eu tenho aqui o dinheiro, respondia ela. – Então deixe ficar aí em qualquer lado – Mas quero troco Zé. – Ó que porra, deixe lá isso e pague antes amanhã…
Ele era assim mesmo….

Jorge Venâncio

1 comentário:

Anónimo disse...

Gostei sinceramente de ler este texto. É interessante, é curioso é divertido e com simplicidade, mais uma vez vem confirmar a simplicidade, honestidade e autenticidade que nos caracteriza.
Fiquei a saber coisas sobre o meu padrinho que desconhecia, uma pessoa que eu respeitava muito.
Celeste Gonçalinho

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