segunda-feira, outubro 30, 2006

Conto de uma noite de nevoeiro

Estava-se no final de Outono. A natureza vestira-se a rigor com um visual naturalmente sombrio e melancólico. As árvores, arbustos e outras espécies vegetais, haviam-se libertado de toda a folhagem abandonando-a à sua própria sorte, mas logo o vento a dispersava pelos matagais e caminhos, onde se acumulava em fartos montes e lentamente se decompunha. Agora transformada, transfigurada e adormecida no tempo, a vegetação esperava resignada a implacável e impiedosa dureza do gelo, que se aproximava; pois assim o determinava o Inverno, que tão próximo estava; o que imprimia à paisagem um dramatismo comovente.
A luz gradualmente despedira-se do dia e dera lugar à noite, uma noite cerrada, escura, carregada de um tão denso nevoeiro, que impunha respeito, quando Luís Duarte (meu pai), - o herói desta aventura - se fez ao caminho solitário, de Ribablida para a Póvoa completamente sozinho, tendo apenas por companheiro o seu próprio pensamento, seguindo por trilhos e atalhos muito pouco recomendados para aquela hora da noite.
Vinha de casa do Pedrinho um amigo de longa data, contando ainda aproveitar duas ou três horas nocturnas para esticar o corpo no humilde aconchego de casa; o que até já nem seria muito mau, se não fosse o facto de ter de o fazer sobre um já muito velho colchão de palha, que mais moía os ossos que os reconfortava.
A noite convidava a imaginação a um quase devaneio fantasmagórico; contudo o nosso caminhante lá ia somando km após km sem se deixar vencer pelo medo; tanto mais que já não era a primeira vez que o fizera.
Porém algo veio perturbar a sua determinação de prosseguir o caminho. A cada passo que dava, sentia que algo o acompanhava.
Mas o quê?!...nada se via, nem um só palmo de terra à frente do nariz. Então, pensava:
-Não devo estar doido?!...e de resto, quem me acompanharia a esta hora ocultando-se de mim?! Bem, o melhor é pensar que dentro de poucas horas estarei debaixo das mantas! - e lá continuou a caminhada não muito conformado com a situação contudo cada vez mais convencido de que não ia só.
Às duas por tês, as pernas deixam de obedecer-lhe…tremem e flectem em todas as direcções.
Mais uma vez o nosso herói se interroga sobre as causas do seu medo e não encontrando justificação visível, resolve continuar a sua saga, jurando que voltaria a casa custasse o que custasse…
Deu meia volta, e algo reproduziu o seu gesto.
-Porra! - diz para os seus botões - sim, porque nem se atrevia a emitir qualquer palavra de forma que se ouvisse. De repente, num impulso inesperado e corajoso, sai-lhe da garganta uma mal balbuciada e trémula frase:
-Quem está aí?!- não teve resposta.
Definitivamente convencido de que algo avançava com ele na calada da noite e inseguro como ia, virara-se para trás instintivamente e repetidas vezes no intuito de desvendar o mistério, mas qual quê, nem a ele próprio se via, tão medonha e negra aquela noite era!
Apavorado, dirige a Deus um fervoroso pedido de protecção.
Por alguns instantes pensou que se libertara daquele pesadelo, mas não… e foi apenas quando por fim chegou a casa, que esclareceu todas as suas dúvidas, ao desvendar com grande espanto quem era afinal a sua invisível mas fiel companhia.
Não ganhou para o susto… que alívio!... Era um corpulento cão de guarda do Pedrinho, que muito bem conhecia o amigo do seu dono e obedecendo ao instinto natural, acompanhou-o. Luís nem queria acreditar no que lhe acontecera naquela noite.
Em troca do bom serviço prestado, o nosso protagonista passára-lhe uma, duas e mais vezes as mãos pelo dorso, orelhas e focinho repetindo vezes sem conta estas palavras:
- Ai, eras tu?! Pelo menos dizias alguma coisa!…
O cão parecendo compreender bem o discurso e o alívio do passeante da noite, ladra em tom moderado e levanta as patas dianteiras à altura do peito de Luís num gesto comovente. Por momentos fica imóvel, deixando-as depois deslizar até tocarem a soleira da porta. O animal dá meia volta e logo desaparece no denso nevoeiro e na escuridão da noite.

Esta é mais uma das várias histórias vividas e contadas pelo meu muito estimado pai que Deus tem.

Cacém, 23/10/2006 Celeste Gonçalinho Oliveira Duarte

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