quinta-feira, dezembro 08, 2005

Recordações por (Zé Macário)



C'um damonho!!... Era mesmo o mafarrico, aquele Ti Zé Diabo! Que se soubesse, nunca praticara qualquer culto, nunca fora à missa nunca fora bafejado-assim se pensava na aldeia - pelo espírito do bem. Quando metade do lavradio, por questões de pousio e pastoreio, passava a uma espécie de baldio comunitário, o Ti Zé Diabo recusava que nesse "baldio" fossem incluídas as suas leiras. Para tanto, sinalizava-as amontoando-as com pequenos montículos de terra, tornando-se assim o terror dos pastores que, tinham de tomar todos os cuidados para não sofrerem coimas, pelo facto de deixarem que alguma das suas rezes pisassem aquelas terras.Nunca aquela personagem fora muito fução no trabalho, porém, em família, parecia ser um santo homem. A sua esposa parecia uma fidalga, e as suas filhas gozavam de extrema liberdade.Matava porco e fazia "função"...Era engenhocas, inventor e tinha uma forja. Dizia-se que em tempos, fabricara moeda - de tostão- mas, que, cedo fora descoberto e terminara tal actividade. Inventara uma máquina de "abufar" à lareira - coisa rara!- para que a família não sofresse queimaduras pela aproximação às chamas. No princípio da década de 50 inventou uma máquina de fazer electricidade aproveitando a energia eólica.P'orriba da minha casa, na varanda da sua casa, plantou um pinheiro alto, encimado por uma ventoinha constituída por duas pás de lata - construção sua - com cerca de um metro cada; fez umas ligações a um velho dínamo - que alguém lhe trouxera da sucata - e deste, à sua casa, onde já houvera feito uma instalação eléctrica constituída por interruptores, tomadas e suportes de madeira - tudo de seu fabrico. Nunca obtivera a energia que ambicionava mas, durante dois anos, estorvou o sono dos vizinhos com o "basqueiro" daquela geringonça altaneira e irritante. Bem olhavam estes, lá p'arriba, com vontade de lhe escangalhar a maquineta, porém, ela estava instalada em propriedade sua, e na altura era desconhecida qualquer lei do ruído. Inventara mais tarde um moinho movido a energia "alcínica" e que viera a ter um final igual aos inventos anteriores.Pois bem, este homem, quando passava por mim, sendo eu garoto, passava-me a mão na cabeça e tinha para comigo sempre alguma demonstração afectiva - coisa rara nesses tempos, em que, nem os próprios pais podiam demonstrar afecto pelos filhos, pois, sendo preciso dar-lhes a "criação", era suposto falar com eles, sempre em gritaria ameaçadora e autoritária.Andava eu na escola primária, e, este homem, sem que eu lhe pedisse, fez-me um pião, com ferrão de encaixe - um luxo de pião e terror dos outros piões. Criamos amizade e ao longo da vida fez-me gratuitamente vários utensílios, tais como sachos e engaços. Dos brinquedos de garoto lembro-me de me fazer "baleiros" e principalmente um arco e flecha, que guardei religiosamente e que anos mais tarde serviu para acertar no cu, despido, do meu irmão mais novo, como castigo de uma qualquer patifaria.O homem de que vos falo, arrastou um pouco penosamente a sua velhice pelas ruas da aldeia, tendo sempre contado com a minha simpatia e, muitas vezes saldei as suas contas quando era a ele que competia pagar o petisco ou mais uma rodada de vinho para que fosse aceite inter pares, velhos da mesma idade.Tivera também um filho varão - muito esperto - que viera a ficar maneta, por motivo de acidente e viera a ser meu "professor" e de quem também, muito grato, guardo boas recordações. Seguindo a prática de seu pai, não era também muito de assistir a serviços religiosos, porém, e ao contrário daquele, muito diligente e trabalhador. Era no entanto dele a grafonola, de corda, que, pelos idos do final da segunda guerra mundial animava todos os bailaricos de fim-de-semana na eira dos Rijos.Deixem só que vos lembre mais um pequeno episódio:- Estamos em fins da década de 50 e processam-se em Arneirós uma série de oito ou quinze dias de sermões, protagonizados por três padres redentoristas vindos propositadamente do Porto. Dos púlpitos, estes padres pregavam assustadoramente o fim do mundo e a condenação eterna, vendendo ao mesmo tempo a salvação a quem lhes comprasse uns escapulários pretos, medalhas, pagelas e jaculatórias, todas carregadas de indulgências. Ninguém, absolutamente ninguém ficou indiferente a tal pregação. De tal forma foi importante que, até o maneta foi assistir a um dos últimos sermões.Comentava-se depois na aldeia, de forma admirada que os sermões haviam sido tão importantes que até tinham operado um milagre da conversão do maneta; pois até o maneta tivera receio de ir p'ro maneta sob ameaça castigadora daqueles aterradores sermões, com cenários ultradantescos. Porém, ao maneta, não conseguiram vender nenhum escapulário salvador, pagela, medalha ou jaculatória, e, que eu saiba, o maneta nunca foi condenado e acredito que há-de salvar-se como todos os outros. E aqui para nós, ele bem merece. Ele era, e é, também um Homem Bom. E que dizer, daquela gracinha de graça, a Tia Graça, que, de graça, tanto com ele engraçou??
Quinta-feira, 08 Dezembro, 2005

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