quinta-feira, dezembro 01, 2005

Recordações (por Zé Macário)

Subiu ao Calvário, entrou na tumba, jaz morta e arrefecida, no sopé do monte Dufe, a caminheta do Ti Setenta. Como eu me lembro daquela caminheta a gasolina que carregaria, talvez cerca de cinco toneladas, adquirida em segunda mão já muito velhinha, pelo Ti Setenta, em sociedade com o seu genro! Mereceria ainda agora ser descoberta no seu túmulo, pelos arqueólogos, reconstituída e, erigida à categoria de monumento nacional, tais foram os momentos de prazer e glória que tal carro proporcionou às nossas infâncias. Ali, no Calvário, sopé do monte, éramos donos do mundo que imaginávamos grande, ao volante daquele carro, em que, parados fazíamos as maiores viagens sem sair dum sítio, e também as maiores patifarias, dignas de crónica de bons malandros. Enquanto "vivera", aquela caminheta e tendo por donos aquela dupla, nunca teve no seu estômago combustível para mais de cinco quilómetros. Quando lhe faltava a força do combustível, deslocava-se o genro à aldeia mais próxima afim de conseguir que umas juntas de bois deslocassem aquele carro até à bomba de gasolina mais próxima. Encantava-nos ver a zanga quase diária entre aqueles dois sócios pela falta de gasolina, ao ponto de, no calor duma dessas zangas, o sogro ter botado uma "bitcha" (lombriga) pelo nariz, tal fora o estado de nervos do pobre homem. Não havia no entanto zangas que não se acalmassem facilmente afogadas em dois copos de vinho tinto, ainda que, uma zurrapa de Meijinhos. Do genro - que homenageio como a melhor pessoa do mundo - lembro, que este homem mais tarde, já a viver em Lisboa como simples ajudante de motorista, arranjava aqui emprego para todos os conterrâneos que para tal se lhe dirigiam, em tempo de grandes necessidades. Recordo com algum remorso quando ainda na Póvoa, um dia, à tardinha, eu, escondido no cedro do cemitério, fazendo gemidos de alma do outro mundo, o obriguei a fugir do trabalho na Tapada do Cão, para casa, arrepiado de medo. Nunca este homem se esqueceu disto, até ao fim da sua vida; e sempre que se encontrava comigo em Lisboa - e era muito frequente - apresentava-me aos colegas, com toda a graça, como o homem que em miúdo lhe havia feito borrar as calças em nome das almas do além. Povoa também ainda as minhas memórias, o pai deste homem, que ainda conheci, já velho ancião, e que personificava em si só, o "CONSELHO DOS HOMENS BONS" no tempo em que na Póvoa habitava ainda muita gente. Sempre que havia dúvidas sobre a passagem de um caminho, de um rego, ou da propriedade do dia de uma água, toda a gente se submetia à sentença lúcida daquele sábio, de nome Manuel Luís, que mantinha na ordem aquele povo, pela força da sua palavra e da sua honra. Nas suas sentenças, conselhos, ou simples sugestões - não sei bem - começava assim: - Oh Rapazes!...- Fazia uma pausa. Apelava à sua remota memória empírica e, continuava: - Tal tal, tal tal, tal tal,...- Estava ditada a sentença e toda a gente se submetia, sem mais discussões alegre e contente por seguir o caminho da "dreitura".Do Ti Setenta - que era um self made man - retêm-se as mais engraçadas memórias:- Teria sido chaufeur de fidalgas e marquesas e teria corrido mundo; fora acompanhante de circos, eu sei lá!...Fazia espectáculo onde quer que se encontrasse, quer em truques de cartas, que nos deixavam boquiabertos, quer em malabarismos vários, em que se destacavam ser capaz de "roubar" as cuecas ou a camisa a qualquer um que estivesse distraído, ainda que com as calças ou o casaco vestidos, e sem que estas peças se deslocassem. Era exímio a fazer aparecer e desaparecer bolas, e , nas cartas, ninguém o batia no jogo da vermelhinha. Em tempos idos, fora caçador. E eram de graça tamanha os diálogos que mantinha com o seu pequeno cão, de nome Ribolim.Quando via uma lura (toca), chamava o cão assim: - Ribolim!...Bôtcho, bôtcho, bôtcho!...Tcheira aqui nesta lura e vê se está aqui coelho?! - O cão, pequenino, amarelo com uma malha branca por baixo do pescoço, era também ele um malabarista. Como nós nos empolgávamos mutuamente a imitar estes diálogos e estas vivências.

Quinta-feira, 01 Dezembro, 2005

2 comentários:

Anónimo disse...

Zé Macário, é muito aliciante ler o teu último texto, pois para além de criativo está muito bem escrito -na minha opinião – diverte-nos e de forma lúdica, traz-nos à memória episódios das nossas brincadeiras de criança: o baloiço que improvisávamos de um ramo de castanheiro, mesmo ali em frente desse velho veículo e as nossas alegres gargalhadas saltando em cima do taipal completamente desmantelado, as pedradas e calhaus que fazíamos deslizar do monte e que caíam em cheio sobre a cabina dessa "pobre " camioneta... como éramos felizes nessas inocentes brincadeiras!...

Anónimo disse...

Por lápso, o comentário anterior não foi identificado. Celeste Gonçalinho de Oliveira Duarte

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