terça-feira, março 13, 2007

Democracia anã ( por Zé Macário )

Morreram os meus avôs muito antes de eu nascer, e as minhas avós conheci já muito velhinhas, embora ainda me acompanhassem gostosamente durante perto de vinte anos.
A minha avó da Póvoa que mais de próximo e mais tempo me acompanhou – que avó culta e que óptima cozinheira aquela – tinha já o tique de abanar muito a cabeça de forma afirmativa, ao contrário das suas contemporâneas irmãs Quintelas ( Albertina, Ana e Maria) que a abanavam de forma negativa. Dir-se-ia mesmo que aquela, estava sempre em contradição com estas três irmãs, arremedando-se mutuamente.
Para além disso, esta minha querida avó, pela sua própria idade, tinha muitas flatulências, pelo que andava sempre a deixar cair displicentemente traques intestinais, inodoros e poucos sonoros, que mais se assemelhavam a quedas ou choques de berlindes em cima de soalho flutuante; Isto bem ao contrário daquelas que, pela força da sua juventude se orgulhavam de dar peidos vernáculos estrondosos, arreados a pau e corda.
Lembro-me por exemplo daquela vez em que uma mulher ainda nova e bem nutrida, detonando um trovão anal, sonoro e fedorento, junto à eira nova, gerou alvoroço nos cães, que ladraram aflitos no fundo da aldeia.
Vem isto a propósito da miserável qualidade da nossa participação democrática, trinta e três anos após a instauração deste regime.
É próprio da regulamentação das nossas instituições e organizações que as suas assembleias possam reunir em segunda convocatória em horário posterior à primeira ( normalmente meia hora depois da primeira convocatória), para se poder esperar pelos atrasados, aumentar o nº de presenças, poder formar quorúns e validar deliberações.
Não obstante isso, as pessoas primam pela ausência, e mesmo entre os presentes, são raríssimas as intervenções enfáticas.
São também poucas, tímidas, displicentes e sem eco, outras intervenções, isto é , muito parecidas com os tais traques da minha avó.
Mesmo numa qualquer votação de braço no ar, é bem notória a hesitação tímida de muita gente, enquanto observa cautelosamente a tendência da maioria que irá dirigir ou condicionar a sua opinião, numa atitude parecida com a daqueles alunos que, não sabendo a lição, se escondem atrás dos colegas para não se sujeitarem a ser chamados ao quadro e demonstrarem a sua ignorância; Ou daquelas pessoas que dando um descuidado traque quando sentados à mesa, se põem a arrastar a cadeira para confundir o som do traque com o do ranger da cadeira.
Ora, sendo rara, raríssima mesmo, a nossa participação convicta e enfática, é evidente que nunca faremos ladrar os “ cães “ do fundo da aldeia…
E assim não vamos lá!...
Haveremos assim de passar a vida a queixarmo-nos das deliberações sociais, que outros tomam por nós, pois primamos pela ausência mesmo quando estamos presentes, e não tenhamos dúvidas de que, desta forma, teremos sempre uma democracia da trampa, insonora e inodora.
A não assunção das nossas responsabilidades individuais –e não esqueçamos que o todo é sempre a soma das partes que o compõe – serão o caminho natural para que, mesmo “democraticamente”, possa abater-se sobre nós uma qualquer tirania autocrática.

1 comentário:

Anónimo disse...

Tais recordações que lhe permitiram o estabelecimento de tais paralelismos terão, porventura, a sua razão, a sua lógica e o seu fundamento. Todavia, da essência da democracia, concorde ou não, fazem parte os aromas e os ruídos, num universo de seres sensoriais que nos caracteriza. Todos os seres do mesmo microssistema transportam consigo os mesmos odores e, pior que isso, suportam aí a sua própria existência.

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