quarta-feira, fevereiro 27, 2008

O candeeiro de cristal (texto enviado por "asas de vento")


O candeeiro de cristal

Ao longo das nossas vidas, todos nós nos deixámos arrebatar pelo simbolismo de um ou outro objecto com o qual estabelecemos uma qualquer relação. Também eu não fujo à regra e, como tal, trouxe à memória uma especial recordação, esta, sim, especialíssima. Trata-se de um velho candeeiro de “cristal”. De aparência imponente, escondia em si grandes fragilidades, tal como as do vidro que lhe deu origem. Todavia, fazia questão de exibir com requinte as suas formas poliédricas em que sobressaíam: o seu pé fino e firme, a sua perna alta e esguia, o seu tronco estreito e arredondado, a sua chaminé curvilínea e sensual. Se bem que naquele tempo tudo fosse mágico, este velho candeeiro era-o ainda mais pelo seu aspecto asseado, pela lisura das suas faces, pelo contraste que o envolvia e pelo misticismo que encerrava. Do alto do seu pedestal, supervisionava tudo o que gravitava em torno da sua auréola de ouro: o arquitectar de projectos, o lavrar de escrituras, o afirmar de intenções, o testemunhar de factos, o proferir de sentenças... Enquanto isso, a sua velha irmã, a candeia, encostada ao canto da cozinha, conformava-se com tarefas bem diferentes, mas não menos nobres: assistia à reza, alimentava os serões, guardava o fumeiro… Por seu turno, o seu irmão mais novo, o lampião, alimentava a bicharada da corte, ia à fonte em noites de breu, tapava os talhadoiros das proximidades… Com tais personagens e tão diferenciadas funções, parecia estarmos na presença de três classes luminescentes distintas. Não era assim, no entanto! Embora com diferentes desempenhos, todos trabalhavam para a mesma causa e a todos era proporcionado o alimento necessário à sua incandescência. Tratava-se, portanto e tão só, de uma classe que, por seu turno, iluminava a vida de uma outra – a dos não iluminados. Apesar disso e sem que nada fizesse para tal, o distinto cristalóide era destacado dos seus parentes próximos a pretexto da sua fragilidade, do seu aprumo ou da nobreza das missões que lhe eram confiadas. Por tal motivo, de quando em vez, assumia posturas egocêntricas, altivas e, até, de algum autoritarismo. Mesmo assim, era tido, pelos luminescentes das vizinhanças, como um referencial de virtudes ímpares, inigualáveis e só ao alcance de entidades supremas. A tudo isto, a velha candeia assistia de forma passiva e serena até que a sua chama se extinguisse. Por outro lado e com a maior das ingenuidades, o lampião sonhava, apenas, tornar-se no mais humilde dos panos que aliviassem o pó das superfícies polidas de tão distinto exemplar. Mas tal não quis o destino. No mais lúcido dos momentos e no mais leve dos alertas, afastou-se dele definitivamente e deixou-se guiar por aquela outra luz, a das estrelas, as tais que tudo sabem, tudo dizem e tudo anunciam. Seguidas de perto, estas amáveis criaturas fartaram-se de brilhar para si, só para si, tanto em noites de acalmia quanto de tempestade. Todavia, a figura do ditoso candeeiro não tinha ficado para trás. As suas luminescências cruzavam-se em redor do desdito lampião, como uma espécie de fantasma em encruzilhada de noite escura. Como a noite não passasse e a cruz se não desvanecesse, eis que é chegado Júpiter que, num assomo de raiva, soprou forte, muito forte e, num ápice, transformou em grãos escuros e informes a essência de tal cristal. Apagaram-se as luzes, a noite ficou mais noite e a aurora que se aproximava deu lugar a um novo dia.

(Extraído da obra “Álbum de Recordações” de Catarina Vá Com Deus)

2 comentários:

jmov disse...

Este texto extraído do álbum de recordações está realmente muito engraçado.
É bom que numa altura em que parece tudo querer cortar com o passado, nos apareçam estes extractos dos referidos álbuns.
Esperamos que outros possam aparecer.
Um abraço amigo.

Anónimo disse...

Fico feliz por saber que, naquelas paragens e naqueles tempos, ainda havia alguma coisa de cristalino. Pensava que tudo era opaco. Todavia, enganei-me e verifico que, no mínimo, havia algumas mentes abertas.
Ass: Lamparina Mágica

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