segunda-feira, novembro 05, 2007

Criança sofre

Foi ontem, carago, lembro-me nitidamente! E porque houvera de não me lembrar, se o ontem é tão próximo; só um dia ou mesmo só um segundo antes do hoje.
Eram vésperas do dia quinze de Agosto e eu tinha sete aninhos, tendo hoje já sessenta e três anões, não sinónimo, mas antónimo dos mesmos aninhos.
Na minha cabeça fervilhava já a ideia de ir à festa da Senhora do Outeiro para ver e ouvir a banda passar, ver a procissão e o arraial, e comer borrego e cubinhos de arroz doce e aletria.
Tinha para estriar umas calças e umas botas brancas cardadas, com quatro voltas de cardas, como aquelas que usavam os magarefes do Bairral, pois se bem se lembram o Bairral era terra de magarefes; botinhas de paixão aquelas - dizia o meu pai!...
Sim, porque cá por mim, até preferia andar descalço do que saber que iria levar um pontapé no cu, de cada vez que tropeçando, topasse com as biqueiras daquelas botinhas numa qualquer pedra do caminho.
Minha mãe mandou-me que fosse cortar o cabelo na barbearia do Gabriel de Meijinhos - barbeiro moderno que já não cortava só à tesourada, pois tinha máquina manual de cortar cabelos; mandou-me no entanto que o cortasse curto para não ter de o cortar todas as semanas.
Sentado já eu, na confortável cadeira da barbearia, o senhor Gabriel perguntou-me como queria o corte; ao que respondi que a minha mãe me dissera para o cortar bastante curto.
Sendo assim, o senhor Gabriel com a sua máquina zero rapou-me o cabelo todo, e em menos de um minuto deixou-me em cima do pescoço aquilo que mais parecia uma cabaça do que uma cabeça.
Ao regressar à Póvoa e sem sequer ter ideia de como vinha – pois nem sequer tinha olhado para qualquer espelho – a minha mãe pregou-me o maior dos sermões e quase lhe deu ganas de ir comigo a Meijinhos exigir a reposição do cabelo cortado.
Porém, bem pior do que isso, foi quando o meu pai chegou a casa e me deu tareia por lhe aparecer assim naquele estado descabelado.
Sim, ao outro dia os meus pais lá me deixaram ir almoçar, de cabeça bem tapada com chapéu de pano – que ficou conhecido como o chapéu do piletas – à senhora do Outeiro em casa da minha avó. Porém enquanto eles viram passar a banda, foram à missa da festa e ao arraial, eu fiquei prisioneiro, fechado em casa da minha avó, por não ter cabeça apresentável quando precisasse de a descobrir para cumprimentar alguém.
Embora me mirasse e remirasse muitas vezes na água das poças, por não haver espelhos lá em casa, nunca percebi muito bem o espectáculo da minha cabecinha rapada, mas lá que sofri, sofri caraças !
Sofri quase um mês, até que o cabelo começasse novamente a dar sinais inequívocos de crescimento.

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