quinta-feira, julho 12, 2007

Viagem no tempo

Foi no dia 23 de Dezembro de 1956

Eu nem queria acreditar

Chegou às minhas mãos

O alvará para ir trabalhar.


Abri e li, o lugar era Alhões

Junto às portas de Montemuro

Estava realizado um sonho

Uma porta aberta para o futuro.


Lá parti de madrugada

Pelos meus pais acompanhada

Atravessando vales e outeiros

Calcorreando caminhos e carreiros.


Íamos perguntando

À senhora Maria e ao senhor Manuel

Onde ficava a povoação

Cujo nome eu levava num papel.


Chegámos à Gralheira

Bem no alto da serra

Já íamos muito cansados

Mas nem sinais da dita terra.


Parámos um pouco

Quase sentados no chão

Aí nos aparece um padre

Que nos deu a seguinte indicação:


Cinco quilómetros mais

Estão em Alhões, perto de Tendais

É uma terra de gente trabalhadora

É o primeiro ano que lá têm professora.


Ficaram admirados

Quando cheguei à escola

Pois já lá estava há uns dias

Outra professora.


A escola era nova

Em primeira mão

E a professora era

De Santa Comba Dão.


Eram muitos alunos

Dos sete aos dez anos

Fizemos duas turmas

Sem chatices nem enganos.


Estavam todos matriculados

No primeiro ano escolar

Uns eram pequenitos

Outros já queriam namorar.


Todos nos respeitavam

De igual maneira

E cada um tomava posse

Da sua carteira.


Alguns alunos fizeram dois anos num

Mas sem passar de classe

Não ficou nenhum.


Trabalhei muito

Não ensinei só português

Ensinei matemática e preparei lições.

Fizeram também teatro

E aprenderam canções.


Durante todo o ano

Vivi num quartinho

Onde só cabia a mesa, a máquina de petróleo

A cama e um banquinho.


Foi-me cedido pelo senhor Regedor

Homem honesto e honrado

Era a autoridade máxima

Lá no povoado.


Fiz muitas vezes a pé

A viagem referida

Tive maus e bons momentos

Que nunca esqueço na vida.


Um dia eu e o meu irmão

Fomos atacados por um cão

Que guardava os rebanhos

Na serra da Gralheira

Livrarmo-nos deles, não havia maneira.


Logo apareceu o pastor

Que calmo como era

Sem grande esforço

Acalmou a fera.


Passados 52 anos

Cá estou eu

A recordar algo

Que nunca se esqueceu.


Lucília Alves

Póvoa, 10 de Julho de 2007

1 comentário:

jmov disse...

52 anos se passaram, mas as recordações não morreram.
Acredito que tenham sido tempos muito difíceis, pois não nos podemos esquecer, que ainda não há muitos anos todas as aldeias se encontravam praticamente isoladas, sem qualquer meio de comunicação viário, pelo que o único meio para lá chegar era a pé ou a cavalo.
Também vivi essa experiência, (numa outra dimensão), pois tinha apenas 6 anos, quando a minha irmã mais velha ficou colocada numa aldeia perto de Castro Daire, (S. Joaninho) e aí fiz toda a minha instrução primária. Recordo-me que tudo era muito difícil. Ao Sábado terminadas as aulas por volta das 12H00, preparava-se alguma coisa, e lá se vinha a pé subindo dois montes, e atravessando dois rios, até Colo de Pito, onde se apanhava a “carreira” até Penude, Sucres ou Matancinha, conforme o tempo e o caudal do rio, nos permitia atravessa-lo, para depois se subir, por Quintela, pelo boucal, ou pelo soito até à Póvoa.
Foram realmente tempos, de dificuldades, mas talvez muito mais compensatórios que hoje.
O reconhecimento passados todos estes anos, por parte de ex-alunos e pais é motivo mais que suficiente para continuarem a sentir orgulho na profissão que abraçaram, e tão bem souberam levar até ao fim. Muitos quadros de empresas e outros, começam por vos dever a vós, primeiros mestres, aquilo que hoje são. Por isso dificilmente nos esqueceremos do (a) nosso/a primeiro/a professor/a . Podemos não saber quem foi este ou aquele professor que tivemos durante o resto do tempo, mas o primeiro foi realmente aquele que mais nos marcou.
Nos tempos que correm, em que cada vez mais os professores são tão mal tratados, quero também eu aqui deixar o meu reconhecimento e o meu agradecimento a todos os professores de ontem e aos de hoje pela coragem que tem tido, de tudo darem em prol da cultura, mesmo com tantos ventos contra.
A todos os professores e ex-professores deste pais o meu obrigado.
Jorge Venâncio

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