terça-feira, setembro 23, 2008

Rota da História

Teria com certeza mais de treze anos quando vi pela primeira vez um preto em pessoa; tendo visto até essa altura, somente várias representações imagéticas.
Até essa idade ouvia muitas vezes falar de pretos, principalmente a indivíduos regressados de missões católicas em África, que os descreviam não como pessoas, mas antes, como hoje se descrevem ou representam os marcianos; admitindo-se, quando muito, que fossem criaturas de algum animismo sincrético.
Diga-se de passagem, que sendo os missionários, nessa altura, dos poucos conhecedores da realidade africana, se compraziam de a relatar cá para os papalvos, apimentadamente recheada de vivências e peripécias sobre pessoas, deslocações, caçadas, safaris etc, absolutamente anedóticas.
Entendiam-se os costumes dos nativos não como objecto de culturas ancestrais, mas antes como instintivos hábitos selvagens muito próximos dos macacos, que era necessário submeter, ensinar, educar?... Ensinar, numa clara lógica de supremacia cultural e humanística da raça branca.
Num preto, todos os actos, gestos, costumes, rituais etc., eram risíveis. Riamo-nos dos relatos da sua indumentária, adornos, tatuagens, brincos argolas, guizos etc, colocados nos mais diversos sítios do corpo, por vezes e para tal, objecto de diversos furos e mutilações. Risíveis eram as suas formas de comer em grupo de um mesmo recipiente e directamente com as mãos, sem qualquer garfo ou colher.
Risíveis, também entre nós brancos, as homenagens festivas, expressas nas mais diversas danças, gestos e rituais, que os pretos prestam aos seus “maiores” (Homens grandes), chefes de aldeia, de concelho, de distrito, régulos, feiticeiros etc, a quem – supomos - veneram como ídolos. Como exemplo – remoto - desta forma colectiva de entender os pretos, lembro o vergonhoso facto histórico do aprisionamento e humilhação do Gungunhana.
No entanto, risível, risível, parece-me hoje a forma como os brancos assimilaram todos esses “bárbaros” costumes dos pretos.
Risível, parece-me hoje saber que há brancos com brincos chocalhos, argolas ou arganeis (pircings), colocados em todo o mapa corporal, inclusive orgãos sexuais e até nas bordas do cu?...
Risível, é que esta onda atravesse todos os estratos sociais, incluindo as “elites”. Curiosa e excepcionalmente, nunca vi nenhum militar padre ou bancário, com alguns destes penduricalhos presos às orelhas ou ao nariz, nem tão pouco, usando aquele exótico corte de cabelo tipo crista da galo.
Risíveis, parecem-me ainda as recepções a qualquer politicozeco, acompanhadas de fanfarra, banda, e tantas vezes com utilização das próprias criancinhas em encenações folclóricas, lançando a escada do “Olimpo”, a balofos e inúteis ídolos com pés de barro.
Entristece-me saber adulterada a língua pátria, com substituição do muito pelo bué, e apraz-me saber que os brancos ainda não comem a sopa com as mãos e directamente da panela, sem garfo nem colher.
Não é intenção deste artigo criticar no nosso povo a importação de tão exóticos costumes e artefactos, tanto mais que alguns até nos enriqueceram, principalmente no domínio da música e da dança, mas tão somente evidenciar através destes exemplos como anda a roda da história, praticando nós hoje os actos, que ontem eram objecto da nossa chacota.
Mudam-se os tempos, mudam-se os homens, mudam-se as vontades. Aquilo que ontem era, hoje já não é, e um dia voltará a ser.
Para onde vais mundo ?

Zé Macário

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