quinta-feira, abril 27, 2006

Nostalgia! (por Zé Macário)

Nostalgia!
Há dias, durante uma recolha de fundos para a organização das festas da Póvoa, passei pela eira de Pinheiro.
Reavivei recordações de infância e de juventude, perante uma eira absolutamente descaracterizada e dividida em pequenos talhões cultiváveis; perdera o bilhete de identidade aquela eira!
Embora térrea, fora em tempos a mais ampla eira da Póvoa e a mais atafulhada de medas de trigo centeio e cevada.
Também a fonte de pinheiro com a sua bica de "meia cana" de tronco de pinheiro, perdera a sua existência.
Existe aí, ainda algo conservada, a casa onde o Zé Meijinhos vivera e criara os seus dois filhos.
Este homem de sete ofícios, lenhador, serrador, agricultor, pastor, pedreiro, trolha, era também barbeiro.
Aos Domingos, pelo preço de um escudo – mil vezes menor do que o preço mais barato de hoje – passava grande parte do dia em casa, fazendo a "tosquia" e catando piolhos e lêndeas a velhos e novos, enquanto toda a gente punha as notícias em dia, ou se ria com uma anedota ou uma boa graçola, não sendo também despiciendas as estridentes gargalhadas da Arminda Pedra, capazes de acordar a aldeia inteira.
A "tosquia" era uma actividade herdada do Ti Russo que, casado em segundas núpcias com a Ti Inocência, fora viver para uma quintinha de Meijinhos, enquanto a sua descendência partira toda para os lados do Lousal.
Ao lado da casa do Zé Meijinhos, naquilo que fora a casa onde a Ti Libânia, sozinha ou quase, criara – com grandes dificuldades e muita fome – a sua ninhada de filhos, existem hoje silvas e salgueiros; perdera também o bilhete de identidade aquela casa que fora berço de numerosa prole, parte da qual minha companheira de escola e de namoricos.
Ainda cercando a eira por outro lado, está também uma casa de construção muito mais moderna, que, penso, ser ou ter sido de familiares da Ti Jacinta, e que, não tendo sido ainda descaracterizada, andava em obras de reconstrução – espero que lhes respeitem a traça original.
Pensando sobre tudo isto, dei por mim a tentar localizar memorialmente no lugar e no tempo, os espigueiros tão característicos daquela terra em certa época.
Consegui localizar três, e no lugar de um deles já existe uma garagem; penso que havia mais, porém a minha memória já não consegue sozinha localizar-se em absoluto.
Como eu gostava que tudo fosse reposto, e teríamos então quase uma aldeia – presépio!

terça-feira, abril 25, 2006

Respirar a Póvoa (por Teresa Costa)



Respirar a Póvoa.

Abro os olhos ainda ensonados…levanto a cortina que tapa a janela pequena do meu quarto. Vejo o sol a estender os seus braços pela ramagem esplendorosa das árvores que cobrem toda a encosta do monte à frente da casa. É magnifico ver o monte nesta época do ano. Os castanheiros de ramos ainda despidos deixando por terra o seu manto castanho amarelado; os pinheiros imponentes, vestidos de verde a rigor, muito conservadores. Nas clareiras o rosa velho do urze cobre o monte, lembrando um ar meio coquete.
Esfrego os olhos, coloco-me de joelhos sobre a cama e abro a janela. Uma brisa fresca percorre o meu corpo e sinto um arrepio. Tapo-me com um cobertor e chego mais perto da janela.
Oiço! Escuto! Além o cuco faz das suas, sempre a cantar e sem tempo nem jeito para fazer o ninho, apodera-se da boa vontade das outras aves para chocarem os seus ovos.
O piar da ave de rapina chame-me à atenção, o seu voo calmo sobre os pinheiros denota que aqui é ela quem domina.
O chilrear dos pardais é constante, sempre atarefados lá vão levando uma palhinha daqui, um raminho dacolá, e assim laboriosamente vão construindo os seus ninhos, com todo o amor e perfeição para receberem as suas ninhadas.
Oiço um batucar repentino e uma pausa; outro batucar, outra pausa. O Pica-pau faz o ninho nos troncos dos castanheiros. Este bater rápido do bico contra os troncos, a mim, só de pensar, dá-me dor de cabeça. Nuca vi nenhum em acção, mas já observei o seu trabalho e é digno de se ver.
Levanto-me. Vou fazer uma caminhada pelo monte.
O caminho é íngreme, tortuoso e o fresco da manhã gela-me as mãos, mas o prazer de subir a encosta é grande.
Já cansada, de respiração ofegante, chego ao topo do souto e início do pinhal. O sol matinal cobre os castanheiros e carvalhos de uma variedade enorme de cores suaves; desde o castanho escuro ao claro, passando pelo laranja, amarelo, vermelho, branco linho, bege, e ainda o verde seco e verde tropa…tenho a certeza que este mostruário de cores fazia as delícias e despertaria a imaginação e a criatividade a qualquer estilista de alta costura.
Entro no pinhal, e aqui a sensação é outra. O caminho torna-se menos doloroso para as pernas e a respiração começa a estabilizar.
A ramagem dos pinheiros não deixa a luz penetrar e parece quase noite. No sopé, só caruma e musgo. Não há outra planta aqui que cresça, por falta de luz solar. Os troncos altos e esguios, impõem respeito e admiração. As copas abafam os sons exteriores e apenas o vento canta e assobia. Sinto o sangue a correr nas veias, a uma velocidade astronómica, o suor percorre-me o rosto em pequenas gotículas, os músculos das pernas ressentem-se e no entanto estou calma.
Uma toupeira cegueta, de cara mimosa, esconde-se repentinamente no seu túnel escavado a preceito. Borboletas de todas as cores e feitios se vão atravessando à minha frente.
Olha!! Um melro acolá, de bico amarelo.
Já vejo a IP3 a cortar o monte e os carros a passar sempre apressados, ora para cima, ora para baixo, tal coelho na "Alice no País das Maravilhas". Vejo Meijinhos, vejo Mazes, Lazarim, Várzea da Serra, as Antas, as Dornas,…
De relance vejo um coelho a atravessar o caminho.
Passo o parque das merendas, muito engraçado, bem enquadrado, inaugurado e inacabado.
Chego à quebrada e assusto-me com um carreirinho de lagartas do pinheiro, todas agarradinhas umas às outras para não se perderem. Trinta e quatro, contei eu!!
Sigo caminho, agora pelo asfalto, e avisto a capela. Uma igrejinha de "brincar". Esta capela é das mais bonitas das redondezas. Vista de fora, ninguém diria, que com suas paredes de pedra robusta e cinzenta, poucas janelas ( diria, talvez, "jenelos"), uma torre sem sino, teria o altar mais bonito e bem ornamentado da região. No tecto conseguem-se ver várias pinturas, já muito debotadas, que mostram o bom gosto, empenho e devoção de quem o fez, salienta-se ainda o púlpito e o coro, estreito com um banco comprido onde apenas os homens podem entrar ( que pena estarmos a perder este património tão rico).
Chego a casa, cansada mas satisfeita.
Tomo um duche, onde a água percorre cada célula da minha pele. Sinto os poros a dilatarem e os músculos a descomprimirem.
Com tantas incertezas que a vida nos traz, uma coisa eu estou certa, vou voltar!!!

Fugazes passagens (por Zé Macário)

Fugazes passagens
O Abílio Costa, filho do Ti Zé Guiomar, casara com a Ilda Pinto, a quem arranjara duas filhas (Lídia e Adelaide), após cujo nascimento morrera.
Cerca de 20 anos depois, filhas, mãe e sogra, foram para o Brasil e não mais voltaram.

Zé Monteiro, que seria natural da Relva ( um pouco acima da Srª da Ouvida), casara-se na Póvoa com a Maria Pinto, irmã da Ilda, e tiveram ainda duas ou três filhas.
Morava na casa do António Rija, tinha uma burra branca, era sacristão e recebia a côngrua para o padre.
Depois do nascimento das filhas – estamos por perto de 1950 – obtivera a carta de chamada para o Brasil.
Para lá partira toda a família e não mais voltara.

Avelino Rijo, era filho do Ti António Pedro, teria pouco mais de 20 anos quando morrera, lá para o minério – penso que, perto de S. Pedro do Sul.

As irmãs Saifoas, naturais da Póvoa, filhas do Ti Saifão, terão saído desse povo ainda muito novas, deixaram uma poça com o seu nome ( poça das Saifoas ) e nunca mais se lhes conhecera paradeiro.

O Raboto, natural da Juvandes, casara na Póvoa, vivera na casa anexa à casa da Lurdes Piletas, morrera pelos 30 anos, sem deixar descendência.

Como tudo é efémero!!!

segunda-feira, abril 24, 2006

Vote no melhor texto ou poema aqui publicado.

    A Todos os visitantes.
    Não falta muito tempo, para que todos nos possamos encontrar mais uma vez na Póvoa. Este ano vamos continuar com a festa que foi iniciada no ano passado. Vamos também a partir de agora iniciar uma brincadeira para as festas. Vamos eleger o melhor texto ou poema aqui publicado. (na página e no blog) Votem naquele que mais gostaram. Enviem as vossas preferências por e-mail. As votações são válidas até final de Julho, e nela entram os textos já publicados, assim como outros que possam vir ainda a ser publicados até essa data (31 de Julho de 2006).

quinta-feira, abril 20, 2006

Vidas apagadas (por Zé Macário)



Vidas apagadas!

Era conhecida por Gracinda "Cega" , e morava no eido.
Fora casada com um tal "Matas"da Matancinha, que, muito cedo a abandonara com o filho.
Carregava consigo o peso de uma miséria tremenda e mendigava esmola para si e para o seu rebento.
Era muito mais velho do que eu, o Justino, seu filho… Tinha a esquisita cor da miséria, e viera a morrer com mais de treze anos de idade, vítima das doenças sem nome que sempre o acompanharam.
Ao pai, nunca mais se viera a conhecer paradeiro.
Após a morte do Justino, também a mãe morrera, poucos dias ou poucos anos mais tarde.
Antes porém, mãe e filho passavam todos os dias à minha porta passo lento, muito lento, descalços e despidos – ou quase – deixando-me ver a tal cor da doença, da invalidez, e da miséria…
Quem se lembra hoje destas vidas, de existência tão breve e tão apagada quão sofrida, perdidas nos percalços da vida?

O Ti Jaquim Costa era maneta das duas mãos, ou melhor dito, era braceta, pois lhe faltavam os dois braços.
Perdera-os muito novo, enquanto combatente em França durante a primeira guerra mundial. Era casado com a Ti Filomena " Pangantum" e vivia numa casa junto ao tanque.
Lembro-me de ele andar sempre a tentar enxotar galinhas com simulados pontapés, dos quais, mais depressa enxotava os tamancos para longe dos pés, do que as galinhas do seu lugar de eleição.
Consta que viveria de uma tença que lhe fora atribuída pelo Estado e que a Ti Filomena gastaria logo que recebida, naquela sua cantilena pegajosa: pangantum, pangantum, pangantum, fica sem nenhum.
Contaram-me de fonte segura, que este homem, ia ao souto com as mangas do casaco atadas nas pontas e estendendo o casaco no chão, varria com os pés as castanhas para cima do casaco, enchendo assim as mangas; quando tinha as mangas cheias, pegava no casaco com os dentes e com um safanão e torcedela de pescoço, o atirava para as costas e levava para casa.
Não terá tido descendentes, e em si, terá ficado cerceada toda a sua genealogia.
A Ti Filomena "Pangantum" sobrevivera ainda muitos anos, porém das filhas que eu julgo que ela tivera – talvez de outro casamento – e teriam chegado a ser gente adulta, ninguém se lembrará já hoje na Póvoa.
Ou será isto, confusão da minha memória?

O Ti Liraxas era irmão do Ti Catrino e tal como este, vivia no eido Casara e vivera com a Tia Pita, que era da árvore genealógica dos Pitas de Penude, porqueiros por tradição.
Ainda por continuidade de tradição, também este casal fez durante muito tempo vida de porqueiros, isto é, andavam de feira em feira comprando e vendendo porcos.
Foi também este, um casal machorro, que não prolongou descendência.
A Tia Pita – que gostava muito da pinga – avariou-se do miolo ainda bastante nova; Eram no entanto dela as melhores azeitonas que se curtiam na Póvoa.
Tinha a mania de falar telegráfica e secretamente com o S. Pedro, e fazer previsões de todos os acontecimentos.
Certo dia a Tia Pita chega à taverna e diz: - Dá-me daí um trigo ( pão de duas cabeças), uma tigela e um cortilho. – Satisfeita esta vontade, parte o pão em pequeninos bocados para dentro da tigela e afoga-o ou ensopa-o com o tal cortilho e diz de novo: - Se este trigo tão pequenino bebeu um cortilho, bota-me lá também dois cortilhos para mim.
Assim, foi tratada para casa, com um lanche composto por um trigo e três cortilhos de vinho.
Quem saberá daqui a alguns anos que estas pessoas habitaram a Póvoa?

segunda-feira, abril 10, 2006

O Voo da Águia (por Anabela Costa)

O VOO DA ÁGUIA

Gostava de partilhar convosco um texto que nunca esqueci e que vou compreendo cada vez melhor, à medida que vou conseguindo voar vivendo na minha dimensão terra.

"Um camponês criou um filhote de águia junto com as suas galinhas. Tratava-a da mesma maneira que tratava as galinhas, de modo que ela pensasse que também era uma galinha. Dava-lhe a mesma comida jogada no chão, a mesma água num bebedouro rente ao solo, e fazia-a ciscar para complementar a alimentação, como se fosse uma galinha. E a águia passou a portar-se como se galinha fosse. Certo dia, passou por sua casa um naturalista, que vendo a águia ciscando no chão, foi falar com o camponês: - Isto não é uma galinha, é uma águia!
O camponês retorquiu: - Agora ela não é mais uma águia, agora ela é uma galinha!
O naturalista disse: - Não, uma águia é sempre uma águia, vamos ver uma coisa...
Levou-a para cima da casa do camponês e elevou-a nos braços e disse: - Voa, você é uma águia, assuma sua natureza!
Mas a águia não voou, e o camponês disse: - Eu não falei que ela agora era uma galinha?
O naturalista disse: -Amanha, veremos...
No dia seguinte, logo de manhã, eles subiram até o alto de uma montanha. O naturalista levantou a águia e disse: - Águia, veja este horizonte, veja o sol lá em cima, e os campos verdes lá em baixo, veja, todas estas nuvens podem ser suas. Desperte para sua natureza, e voe como águia que és...
A águia começou a ver tudo aquilo, e foi ficando maravilhada com a beleza das coisas que nunca tinha visto, ficou um pouco confusa no início, sem entender porque tinha ficado tanto tempo alienada. Então a águia sentiu seu sangue de águia correr nas veias, perfilou, devagar, suas asas e partiu num voo lindo, até que desapareceu no horizonte azul."

Leonardo Boff, A águia e a galinha, a metáfora da condição humana
O ser humano é criado como se fosse (e para continuar a ser) uma simples galinha, mas, a verdade é que todos nós somos águias que ansiamos ganhar altura e projectamos visões e sonhos para além do nosso pequeno galinheiro. Acolhemos com prazer as nossas raízes (galinha), mas nunca tal aceitação deveria ser feita à custa da nossa liberdade, de ficarmos presos ao e no nosso galinheiro e de não voarmos livres e podermos abraçar o sol, a chuva, o vento, o ar e o universo inteiro com as nossas asas. Queremos resgatar o nosso ser de águias. As águias não são feitas para andar na terra, mas para voar nos céus, medindo-se com e desafiando o horizonte longínquo, os picos das montanhas e os ventos mais fortes.
Hoje, nos dias que correm, em que o poder, a ganância, o dinheiro, e o consumismo ganham cada vez mais terreno e criam cada vez mais galinhas, é urgente darmos asas à águia que se esconde em cada um de nós. Não podemos continuar a assistir aos mandos e desmandos dos mais fortes, dos detentores do ter e do poder, que querem controlar pelo simples prazer do controlo, do poder e da dominação dos mais fracos, reduzindo-nos a simples galinhas e subordinando-nos aos seus interesses. É preciso que não aceitemos essa submissão, que rejeitemos os conformismos e os comodismos, porque essa dominação é a causadora de muitos sofrimentos à humanidade, da pobreza extrema, da intolerância, do racismo e da exclusão social. Por isso, é necessário que despertemos a águia que existe dentro de nós para juntos construirmos um mundo melhor, onde todos possamos participar e decidir sem omissões, libertando-se da opressão. Só então encontraremos o equilíbrio.

No entanto, pobres de nós se pretendermos ser apenas águias que voam nas alturas, que enfrentam as tempestades e têm como horizonte o sol e o infinito do universo. Acabaremos por morrer de fome. A águia, por mais que voe nas alturas, é obrigada a descer ao chão para se alimentar, caçar um coelho, uma rato, uma preguiça ou qualquer outro animal. Somos águias. Mas devemos reconhecer o nosso enraizamento numa história concreta, no local onde nascemos, na nossa família, numa biografia irredutível com suas limitações e contradições: a nossa dimensão-galinha.

E é nesta dimensão que eu, recém-entrada na família Costa e tendo tido o privilégio de conhecer e poder estar num local onde me sinto águia, dou largas aos meus sonhos, abro as minhas asas e voo para lá das montanhas que o meu olhar alcança, a Povoa de Vila Nova de Souto D'El Rei, me revejo e sou muito feliz. Desde o primeiro encontro com a Póvoa, que tive a certeza de que voltaria e de que a minha dimensão águia e a minha dimensão galinha ficariam para sempre ligadas a esta família, a esta terra e às suas gentes. Como descrever a inigualável beleza, imensidão e serenidade da paisagem que nos envolve na Póvoa? Os cheiros, a beleza das giestas selvagens, dos castanheiros, dos pinheiros, o souto, as miríades de tons e colorações, os sons dos pássaros, dos ribeiros, da água a correr, enfim, o som e o cheiro da Natureza na sua mais pura demonstração de beleza e grandiosidade? Como descrever os sorrisos, a simpatia, a força das gentes da Póvoa com quem me cruzei, com quem falei, ri e brinquei? Apenas com uma expressão: o voo da Águia!

Sejamos, pois, galinhas e águias: realistas e utópicos, enraizados no concreto e abertos ao possível ainda não ensaiado, andando no vale mas tendo sempre os olhos nas montanhas. Recordemos a lição dos nossos antepassados: se não buscarmos o impossível (a águia) jamais conseguiremos o possível (a galinha).A águia compreenderá a galinha e a galinha se associará ao voo da águia."

E nunca nos esquecemos do que é óbvio, do que está mesmo aqui ao nosso alcance, mas que a Humanidade teima em não querer ver.

"Os Deuses com medo de que, se o ser humano fosse perfeito, não necessitaria deles, reuniram-se para decidir o que fazer. O mais sábio dos deuses disse: "Vamos dar-lhes tudo, menos o segredo da felicidade".
"Mas se os humanos são tão inteligentes, vão acabar descobrindo esse segredo também!", disseram os outros deuses em coro.
"Não", responde o sábio - "vamos escondê-las num lugar onde eles nunca vão achar - dentro deles mesmos"

Anabela Costa

sexta-feira, abril 07, 2006

RITUALIDADES (Por Zé Macário)

Em tempos que já lá vão e que, parecendo pré-históricos, são no entanto próximos dos nossos, os longos períodos dos rituais "pró-acasalamento" no mundo rural e por consequência também na Póvoa – que se situavam sensivelmente em idades entre os 14 e 25 anos – tinham uma sinalética muito complexa ( muito mais complexa do que o actual código da estrada ) e o seu estudo exigia grande aplicação; quem não se aplicasse ao estudo, não percebesse os sinais e entrasse em "contramão", estava arrumado. A vida era uma escola empírica de autodidatas, onde nada se ensinava e tudo se aprendia só pela observação e pela perspicácia. Percebia-se que um rapaz começava a olhar para a "sombra" quando começava a aparecer com um penteado, de cabelo muito assente, provocado pela colocação na cabeça, de água muito açucarada que, tornando-se muito incómoda porque a transpiração fazia correr continuamente água doce para a boca e ainda por causa do "mosquido" – até porque o homem não fora dotado pelo criador de rabo para sacudir a mosca - era porém muito eficiente nos cabelos rebeldes ou na luta contra o vento. Nas raparigas era vulgar o uso de azeite para frisar e fazer luzir as melenas. Adornos masculinos mais tardios eram vulgarmente constituídos por correntes de ouro colocadas bem à vista de toda a gente, normalmente a sobressair entre duas casas do colete; também um vistoso relógio de pulso dava certo jeito quando se aproximava uma garota e se estendia muito o braço para encurtar as mangas da roupa e verificar as horas, ainda que estas fossem de leitura difícil ou impossível por causa do analfabetismo. Os rapazes competiam muito pelo nº de rubis dos seus relógios tentando adquiri-los com mais rubis do que o dos seus vizinhos. Era uma questão de importância! Os chapéus eram de uma variedade imensa e davam imenso jeito para ajudar a segurar uma rosa ou um cravo atrás da orelha. Se na missa se ia para o lugar do coro, convinha ter em atenção os sinais imanados lá debaixo pelas raparigas, na forma como constantemente levavam a mão à cabeça, fingindo compor o lenço, denunciando ou exibindo o nº de anéis e quais os dedos em que estavam colocados. Para se tornarem mais formosas as raparigas quando iam à festa, recorriam muitas vezes à colocação de serapilheiras no peito, por dentro dos coletes, não sem que se sujeitassem por vezes a percalços desagradáveis, quando estas lhes caíam ao chão à frente dos rapazes , deixando-as desarmadas da sua fictícia formosura. Porém valeu-lhes o aparecimento mais tarde dos soutiens– grande invenção do tempo – de formatos acentuadamente cónicos, e que normalizaram as mamas de todas as mulheres. A verdade porém é que a maior vaidade delas residia nas socas e nos soquetes. Quando as raparigas vinham em grupo da festa, da sede paroquial, ou da cidade, havia um ritual comum a todos os rapazes para afastar do grupo a escolhida, e consistia em aparecer por detrás e tirar-lhe a soca ou puxar-lhe o xaile – peça de indumentária exigível em muitas ocasiões. Deixar um lenço com uma ponta pendente fora do bolso era um sinal de que se procurava " galo ou galinha". Acenar de longe com lenços vermelhos, fora moda de outros tempos. As conversas de namoricos começavam sempre por nha nhas ou conversas da treta, como por exemplo: Tens uma vaca muito bonita; ou então: A minha galante puxa melhor que a tua bromelha.

segunda-feira, abril 03, 2006

Infantilidades (por Zé Macário)

Infantilidades

Eu arda! Eu arda, se não é verdade aquilo que vou contar-vos:
- Lembro-me ainda – muito mal – da Ti Gracinda Matilde, ou Ti Metildes como se dizia; e isto para dizer que me lembro bem do rapazola namorador que era o Luís seu filho.
Ora o Luís era um rapaz bem-falante que me abismava por saber dizer " persuadido".
Era, enquanto rapaz – muitos anos antes do Ti Zé dos terços – o indivíduo que conduzia a reza do terço com a respectiva ladainha em latim todos os dias e ajudava à missa de quinze em quinze.
Se era bem-falante e sabia dizer "persuadido", era também bem parecido e tinha sobre a testa uma avançada e cobiçada marrafa de cabelo.
Viera a casar com a filha de uma senhora que nunca colocara algo em qualquer sítio, porque tudo " prantava" em todos os sítios, mas isso é outra conversa.
Retenho-me agora só no Luís, na sua admirável reza e na marrafa, que eu, quando assistia ao terço comparava com a de um serafim que segurava, esforçado uma coluna do lado esquerdo do altar mor.
Da ladainha, eu não percebia nada e o meu tempo durante aquela reza era passado na contemplação doída daquele pobre serafim, vergado, - já mesmo deitado – pelo peso daquela coluna, que me metia mais dó por tanto o comparar fisionomicamente ao Luís, quer pela marrafa quer mesmo pelas maçãs do rosto.
Quanto ao termo "persuadido", devo dizer que muito me ajudou quando eu – precoce criança – o forçava a coincidir num qualquer fraseado, realçando assim o meu vocabulário, exibindo-me perante as moçoilas em idade escolar.
Outros termos me terão dado grande estatura linguística, como por exemplo, o realmente, do Zé da Celeste; porém o " persuadido" é que verdadeiramente me catapultava aos píncaros lunares.
Ainda muito criança, se via o dono do "persuadido", numa conversa com alguém, ali me juntava eu como gato que esperasse a queda de uma espinha da mesa do dono, aguardando ver sair um " persuadidozinho", daquela boca, que logo juntava ao meu léxico.
E já espigadote, quando saía para o engate, ia muito mais tranquilo – como se levasse um belo adorno qual general carregado de medalhas – porque munido do meu colar de " persuadidos".
Poderá parecer absurda ou ridícula esta pequena estória , porém, estou " persuadido" que o absurdo não existe e o ridículo faz parte do nosso processo de aprendizagem.

sábado, abril 01, 2006

Aos meus queridos netos (por Zé Macário)

Zé Macário (25-03-2006 - 07:56:13 PM)

Aos meus queridos netos

Tive a felicidade de criar, nos primeiros anos de vida, cinco, dos seis que vós sois e de acompanhar de muito perto os passos de todos na adolescência. Foi um privilégio para mim mudar a fralda, dar-vos o banho, a papa, limpar-vos o cú – sim porque netos meus não têm rabo – vestir-vos, eu sei lá!... Como foi bom, meu Deus, dar-vos nessas rechonchudas bochechas, aquela inebriante diversidade de beijos de chupão, de pincel, estoirados e até amorosas dentadas nessas apetitosas "nalgas"! Se era bom arrastar cada um de vós dentro de uma caixa plástica do leite, com quatro rodas octogonais de madeira, por exigência vossa, para vos encher de guloseimas no café mais próximo, a fim de me deixardes ler o jornal em paz, era óptimo arrastar dois ou três em vagons de duas caixas do mesmo material passeando pelas ruas do bairro ou mesmo numa avenida de Lamego, enquanto as pessoas olhavam de soslaio, ou a avó envergonhada daquele carro tosco e mal feito (parecia o carro dos Flinstones) se refugiava num qualquer café. Ajudei-vos a dar os primeiros passos e a pronunciar as primeiras palavras; ajudei e ajudo muitas vezes a fazer os trabalhos escolares, mais conhecidos por TPC's. Desenvolvemos grandes cumplicidades ao ponto de nos percebermos mutuamente, em toda a linguagem mímica implícita em cada sorriso, gesto, ou simples ruga facial. Como eu gostei e gosto de estar presente nas vossas birras, vaidades, choros, sucessos ou insucessos e até nas vossas tentativas de afirmação de personalidade. Tenho a certeza de vos ter proporcionado infâncias extremamente felizes, sabendo contudo também que o gozo que me retribuístes foi infinitamente maior. Agora o que mais quero é exortar-vos a perceber o valor da instrução, da cultura, e a ser pessoas livres e dispostas a pagar o preço da liberdade, na certeza de que esse preço é sempre mais baixo do que o de viver vidas sempre de espinha curvada . Só as pessoas instruídas e cultas podem ser livres...Se o quiserem. Por isso meus queridos netos, cultivem-se, personifiquem-se e afirmem-se! Aprendam a ser livres, voem como passarinhos e apanhem a Lua porque ela está ao vosso alcance e depois de a apanharem deixem que todos brinquem com ela. Ao querer falar-vos de moral ou ética, digo-vos que me parece muito difícil a definição do conceito de qualquer delas, e muito menos hoje onde tudo parece confundir-se em absoluto relativismo; no entanto sinto-me capaz de afirmar que essa definição está registada no nosso código "genético" de tal forma que sentimos tocar cá dentro uma campainha, informando-nos em cada acção, se esta é socialmente aprovável ou reprovável. À sua observação empírica, estudada, comparada e ao estudo da sua implicação nos outros e no mundo, eu chamarei de leitura do livro da Sabedoria. É bom que a par de todos os estudos, que vos aconselho, aprendais também a ler o (abstracto) livro da Sabedoria. É na leitura desse livro que aprendereis a discernir Bem e Mal e consequentemente a ser livres. E não tenhais dúvidas netos meus, que há – sempre houve – muitos milhões de seres humanos que, sempre tendo servido de capachos de outros seres humanos, tecem – sempre teceram – louvores ao Criador, pela honra de terem sido pisados por tão nobres pés. Mas pior ainda, é serem muitas vezes escravos de si próprios, pela falta de treino na condução dos seus pensamentos, isto é, falta de discernimento de Bem e Mal. Há muita, muita gente com altos níveis de instrução e que até nos é impingida todos os dias como modelo, e que nunca aprenderam minimamente a ler o livro da Sabedoria. Outra coisa importante de que hoje quero falar-vos, é do domínio do medo: - Em todas as sociedades passadas, presentes ou futuras, as organizações e muitas, muitas pessoas vivem – e muito bem – do medo que, " farsando ", conseguem infligir aos seus concidadãos; ora sabendo nós, que os "fortes" só o são em função da fraqueza dos outros, convém nunca dar a ninguém qualquer sinal dos nossos medos. Quero com isto dizer que convém desde muito novos, treinar – e isto requer uma longa aprendizagem – o domínio dos nossos medos e sobretudo não dar sinais das nossas fraquezas. Também nunca deveis passear com arrogância as vossas vitórias, porque a humildade é uma virtude e a seguir há outras batalhas... Um dos piores medos que conheço é o da exposição da nossa ignorância, porque este medo inibe a nossa aprendizagem. Não tenhais medo e perguntai tudo o que não sabeis aos vossos professores mas sobretudo aos vossos pais e aos vossos avós. Com os pais deveis falar, falar, falar, expor, expor, expor, porque, por mais que faleis, haveis de ser sempre invadidos de grande arrependimento, do muito que há-de sempre ficar por dizer. Que Deus vos abençoe, meus queridos.

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Iniciado em 2005, este blogue cumpriu em parte, aquilo para que tinha sido inicialmente projetado. Com o decorrer do tempo e tal como n...